sábado, 29 de janeiro de 2011

Lendas de Sintra


João Rodil
Historiador


Amor Primordial

No tempo em que a criação do mundo ainda ia a meio, lá pelo ocaso do quarto dia, Deus sentou-se no alto de uma serra a admirar a obra feita e a pensar no muito que havia por fazer.

Entre o pouco movimento que a Terra tinha então, onde apenas o vento farfalhava pelas árvores e as ondas do mar chapinhavam as encostas, antes de espalhar pelos bosques e planícies a imensa mole de diferentes animais que havia de criar em breve, Ele verificou, com profunda nostalgia, que na obra faltava amor, mesmo naquela ínfima etapa da criação.

Neste mesmo tempo, andava o Sol meio doido às voltas pelo espaço, sem saber porque corria assim, sem destino nem descanso, tão jovem e já ardendo de solidão, a completar jornadas cíclicas como um peregrino sem fé. Olhava os mares e os continentes com indiferença. Das estrelas suas irmãs tão longínquas, apenas lhe chegavam sussurros tardios de escárnio pelo seu apego à esfera azul, da qual era guardião e prisioneiro. Triste era o seu aspecto, como triste era o seu viver.

De igual modo, também vagabunda e solitária, andava pelo opósito da Terra, iluminando as noites primordiais, a bela Lua, formosa em todas as suas proporções, prenhe de luz e de desejo a sonhar amores ideais. Construía, na sua meninice, a imagem de um companheiro caloroso e forte que com ela comungasse os desníveis das marés, a possuísse toda na sua fase ovulatória e admirasse na plenitude a beleza dos seus quatro rostos aveludados.

Sentado no alto da montanha, Deus viu passar primeiro o Sol e, embora se orgulhasse do seu esplendor, sentiu-lhe a tristeza na alma. E Deus condoeu-se da Sua criação.

Ali ficou, meditando naquele luminar que havia concebido, errante e solitário como Ele próprio. E um frio choroso rodou dilacerante por dentro da Sua omnipotente figura, até que o Sol se enterrou no grande mar desgostoso da vida, com o ar de quem se abandona resignado ao destino. E estava Deus nestas conjecturas quando vieram as trevas. A serra, moldada pelo breu em contornos serpenteantes, era, ao mesmo tempo, assim uma espécie de altar propício ao plasma da criação e leito macio capaz de embalar o espírito pelas sendas utópicas do sonho.

E já Deus se desviara destes pensamentos, porque a obra ainda não era completa e muito havia por fazer, quando despontou, surgindo abruptamente do vértice copado do último monte da serra, a jovem Lua, tão pura e sem rugas em toda a sua cândida superfície. A beleza surpreendente daquele aparecimento mágico, que emprestava ao cenário da criação um colorido sinuoso e quente, trouxe aos lábios de Deus um sorriso paternal.

Mas quando ela se empoleirou, atingindo o zénite por cima da serra, Ele vislumbrou-lhe no olhar a mesma tristeza que vira no Sol. E ao apalpar-lhe a alma, sentiu escorrer dela lágrimas que sabiam a solidão, lágrimas cujo sal era feito de amor, daquele amor poderoso que não encontra ninho onde se aconchegar. E Deus, comovido em toda a Sua largura, chorou com ela. A serra, que tudo presenciou com a calma natural do seu corpo repousado, segredou-lhe:
- Faz de mim a casa dela. Deixa que aqui encontre o seu amado.

E Deus, em frémitos de espanto, levantou-se iluminado e grato por tão sábia revelação, certo agora de que era este o toque de amor que faltava à Sua obra. Apertou na mão um punhado de terra e fez soar pela noite a Sua palavra:
- Tu chamar-te-ás, de agora em diante e para todo o sempre, Serra da Lua!

E voltando o Seu magnífico rosto para a menina brilhante que cintilava no firmamento, acrescentou:
- E amanhã, no despontar do quinto dia da criação, encontrarás aqui, no alto da tua morada, o Sol, teu esposo e teu amado, e beijar-se-ão à esquina da madrugada. O vosso amor será espelho e exemplo para todos os seres vindouros até à consumação da obra. Esta é a minha vontade!

Dito isto, ficou Deus contente consigo próprio, porque viu que aquilo era bom. Sim, aquilo era bom. Era, sem dúvida, o pedaço fundamental que faltava na Sua maravilhosa criação.

Extraído do livro "Lendas e Mitos do Monte da Lua".

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