sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Lendas de Sintra


João Rodil
Historiador


Filho de um Príncipe Marinho

No tempo em que a Terra era toda uma, antes da grande ilha se fragmentar e partir em pedaços vagabundos através do mar, naquele tempo primordial do imenso Pangea, os homens viviam de acordo com o Universo.

Olhavam as plantas e entendiam-nas, respiravam com eles, sentiam-lhes a seiva. Falavam aos animais e aprendiam com eles. Tocavam as pedras e as areias e não pensavam nelas, porque as percebiam e comungavam em silêncio a razão de estarem ali. E o mar, essa água toda que era una então, servia-lhes de teatro da imaginação onde vagueavam a fantasia, de amigo capaz de guardar segredos murmurados, de deus e de pai que lhes fornecia alimento ao espírito e comida para saciar o estômago.

Mas, um dia, a Terra inclinou o seu eixo e deitou-se de lado no colo do vácuo. E dos cataclismos que se seguiram resultou quebrar-se em vários bocados o grande Pangea. Assim se separaram também os homens e os animais, perdendo-se com a divisão aquele entendimento mútuo. Assim se destruíram espécies e civilizações, à medida que as plataformas se afastavam umas das outras como barcos de magma a navegarem à deriva.

Entre todos os homens desse tempo, houve uns que não perderam a consciência e a memória do seu modo de vida, da sua ciência e cultura. Mantiveram-se à tona durante milénios, no rasto de ilhas que a Terra foi largando pelo mar, entre dois continentes que nasceram desta mesma fragmentação. Tornaram-se, por necessidade biológica, seres anfíbios readaptados a uma nova existência. Chamaram-lhes Atlantes.

A Rocha de Sintra é um pedaço desse velho continente. O recorte da sua crosta marca a separação entre dois mundos. E o povo que por aí cresceu, é um misto de areia e de sal, terrestre e aquático, resultante de um cruzamento sanguíneo do qual não rezam as crónicas, mas que haveria de ficar inscrito para sempre na sua própria pele.

Depois que os continentes ancoraram nos vários pontos do globo e a acalmia regressou às entranhas da Terra, os homens, desgarrados e confusos, voltaram a agrupar-se e buscaram estas costas ocidentais. Construíram povoações entre o mar e a serra para terem de um lado o peixe, do outro a caça. E na abundância desta terra de mel, os homens cresceram e multiplicaram-se. Surgiram então as disputas e os machos partiram para a guerra a matarem-se uns aos outros. Ficaram as mães sem filhos e as donzelas sem noivo.

Nesta altura, tinham as mulheres o sol por deus e, à hora do ocaso, arribavam às praias e rogavam-lhe que intercedesse por elas, trazendo de volta os seus homens.

Numa dessas cerimónias, uma bela rapariga chamada Alana deixou-se ficar até mais tarde. Não o fizera por prece ou por promessa, mas tão só porque o anoitecer lhe expandia a alma e a brisa salgada que lhe beijava os cabelos negros era gratificante. Estava ela assim, toda envolta em sensações, quando ouviu alguém cantar. Era uma melodia mágica, apelativa, que puxava sentimentos do mais profundo da sua intimidade. O marulhar das ondas mansas que lhe acariciavam os pés, acompanhavam aquela voz doce que parecia chamá-la.

Avançou atraída mar adentro. Sentiu a água molhar-lhe os joelhos, depois o colo, e quando uma onda se agigantou à sua frente tremeu de medo e pensou que se afogaria. Queria recuar mas as pernas não lhe obedeciam. E aquela música a soar dentro dela, vinda do breu, a puxá-la, a puxá-la a muito... e pensou-se perdida.

Foi então que se viu erguida como uma pluma, aninhada em dois braços fortes e molhados que o prateado da lua fazia cintilar. Deixou-se ir sem perguntar como, sem querer saber porquê, como quem sonha maravilhas e não quer ser acordada.

Ele deitou-a na areia ainda morna da praia. Passou-lhe pelo rosto as mãos, sedosas como medusas, e Alana gostou. Sentia pelo corpo um gostoso formigueiro. Não. Era antes como se nadasse nua num mar de algas.

A lua brilhou mais largo a afoguear os silícios da praia. E ela, olhando-lhe o corpo, foi descobrindo pequenas escamas agrupadas em ninhos como mexilhões agarrados a um rochedo. Eram azuis, de um azul metálico e marinho. Passou-lhe as mãos e o toque era bom. Parecia que tacteava uma anémona, viscosa e macia. Húmida. E Alana, mulher da terra com cheiro a pinho e urze, sentiu-se fascinada naqueles braços aquáticos, deixando embalar os sentidos ao som do rebentar das ondas.

E no remanso da maré amaram-se como uma concha fechada. Aos lábios campestres de Alana fundiram-se os dele, numa explosão bravia de beijos salgados.

As luas foram passando e com elas as marés. Todos os dias, ao entardecer, Alana sentava-se na praia à espera que o seu tritão cantasse. Mas ele não tornou mais. E as suas lágrimas, que eram agora tão salgadas quanto os beijos dele, rolavam perdidas a perderem-se na areia. O seu príncipe marinho não voltara, mas também não a deixara só. Sentia crescer-lhe no ventre uma onda viva. Nove luas cheias passadas depois daquela noite mágica, a barriga de Alana estava tão cheia como a lua.

E num dia de mar revolto, em que as ondas subiam a arriba para se misturarem com a terra, nasceu um menino. Trazia nos olhos um brilho profundamente marítimo, nos lábios um sorriso lunar, e na pele, de um ouro solar como as dunas de areia, cintilavam pequenas manchas aniladas como escamas de peixe. Alana chorou de alegria. De alegria ctónica. E ainda cansada e trôpega dos trabalhos do parto, correu à praia a partilhar o filho com o seu príncipe e a banhá-lo no reino de seu pai.

N.A.: As praias do litoral sintrense são sazonais. Quer isto dizer que o mar retira as areias no Outono, por volta de Outubro – Novembro, e volta a encher as praias com a chegada da Primavera, durante os meses de Março e Abril. Este factor, para além de as tornar particularmente saudáveis, já que as areias ao regressarem às praias vêm lavadas, cria, no entanto, condições excepcionais para a proliferação de uma bactéria chamada pytiriase versicolors. Esta bactéria provoca na pele do ser humano uma leve descamação, em forma de pequenas manchas geralmente mais claras do que o tom de pele. Facilmente tratável, esta bactéria está na origem da lenda que acabamos de contar.

Extraído do livro "Lendas e Mitos do Monte da Lua"

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