domingo, 8 de maio de 2011

Lendas de Sintra


João Rodil
Historiador

Sete Ais

Shahida era uma bela princesa moura, filha do senhor de Lisboa, ou Alisbuni, como se dizia na sua língua. O seu pai possuía um palácio muito acolhedor num lugar encantado que se chamava Xintara, nome bastante semelhante ao que hoje lhe atribuímos – Sintra.
Era ali, naquele pedaço do paraíso, que Shahida passava o Verão, sempre na companhia da sua aia Zarmina, uma núbia roliça que a vira nascer e que nutria por ela um carinho de mãe. Passavam agora a maior parte do tempo nos jardins do palácio, pois os moçárabes da região andavam bastante exaltados naquela época. Falava-se que o Conde Portucalense, D. Henrique de Borgonha, preparava uma incursão por aquelas bandas e, então, pairava no ar um cheiro a revolta no seio da comunidade cristã que era, a bem dizer, a maior parte da população.

Assim, a bela Shahida pouco se aventurava fora dos muros do palácio onde a guarda, por ordem de seu pai, mantinha a mais apertada vigilância. E tanto que ela gostava de passear nos bosques, alargar as vistas no alto da serra, cheirar a maresia no litoral escarpado e bravio. Contudo, mesmo com todos estes impedimentos, a princesa escapava-se sempre que podia, nem que fosse só para se embrenhar na mata de Almosquer, que ficava a pouca distância da vila.
Foi numa dessas fugas, depois de ludibriar a guarda e com a criada Zarmina a arrastar-se atrás de si, que, ao chegar à entrada do bosque, lhe saltou ao caminho um jovem cavaleiro. A aia, vendo que era cristão, quase desmaiou. Shahida manteve-se firme, de queixo levantado e porte altivo, enfrentando o infiel do cimo da sua nobre condição.
O jovem desmontou, calmamente, sem nunca tirar os olhos da princesa. Zarmina, que já recuperara do susto, agarrou num ramo podre e preparou-se para proteger a sua menina. Perante a figura caricata da velha ama, o cavaleiro deu uma grande gargalhada:
- Ah! Ah!... Sim senhora. Vejo que a menina se faz acompanhar por uma guarda inultrapassável! Mas não precisais de ter medo. Não costumo atacar mulheres. Para mais mulheres bonitas, como é o caso de vossa mercê!

E, dizendo isto, fez uma vénia. A criada, de olhos arregalados, onde o branco ocular mais se destacava na tez negra da sua pele, baixou o pau. Shahida puxou o véu para o rosto e retribuiu a vénia com um leve aceno de cabeça.
- Se és homem de paz, então, que Alá seja contigo!
- É melhor que ele fique convosco. Mas vale a intenção e essa, eu agradeço-vos. Dizei-me, agora, o que faz uma nobre senhora e sua dama sozinhas neste bosque e em tempos tão difíceis?
A simpatia do jovem cavaleiro já tinha conquistado a velha aia. Zarmina deixara cair o medo e exibia agora um sorriso meigo. Tinha bom porte e era formoso aquele cristão, achava ela. A princesa também parecia estar de acordo. A julgar pelo modo como o olhava, dir-se-ia até que ela não estava, apenas, fascinada com a beleza do moço.
- Viemos passear... E vós? Que fazeis por aqui, tão perto das tropas de meu pai?
- Esperava-vos, senhora!...
- A mim?!
- Sim, minha princesa. Desde o dia em que vos vi, apanhando flores no Jardim da Lindaraia, jamais vos esqueci.
Shahida voltou a puxar o véu e, de novo, cobriu o rosto. Mas os seus olhos negros já desmentiam aquele gesto de pudor. O atrevimento do cavaleiro ainda a cativou mais e, então, deixou cair o véu.
- Já vi que sois atrevido! E também tendes nome?
- Fernão...
E outra vez os olhos se encontraram. Os dele, azuis como o mar, pareciam ondas de brilho a querer invadir a negritude dos dela. Deixaram-se ficar, por instantes, ali sem dizerem nada, apenas se contemplando um ao outro num silêncio exterior que contrastava com o turbilhão de emoções que ambos experimentavam dentro de si.
De repente, Zarmina interrompeu-os:
- Senhora! Senhora, depressa que se aproximam cavalos!...
De facto, ouvia-se já o barulho dos cascos lá para as bandas dos Pisões. Fernão montou devagar, sempre olhando a princesa nos olhos e, na volta da montada, ainda rematou:
- Até breve, bela Shahida!
E nisto partiu a galope, entranhando-se na mata de almosquer. Instantes depois, apareceram os guardas do palácio. Procuravam Shahida. Ela deixou-se levar, com um sorriso nos lábios. Alguns guardas mais velhos até estranharam o comportamento da princesa. Não era hábito aceitar, com tanta calma e benevolência, as regras de segurança.

Fernão e Shahida nunca mais interromperam os seus encontros. E a paixão gerou o amor. Tinham eleito um outro local para estarem a sós. Ficava para lá da mata de Almosquer, ao fim de uns campos onde se semeava centeio. Aí, a serra fazia um parapeito sobre o vale do Rio das Maçãs. Era uma verdadeira varanda sobre o paraíso. A vista estendia-se até ao oceano. Em baixo, o rio serpenteando entre as hortas e pomares, sempre acompanhado da sombra dos freixos e dos salgueiros. A um canto do terreiro, amontoavam-se grandes penedos graníticos, formando uma espécie de concha. E foi nessa amplitude de horizontes e aconchego da terra que os dois jovens de amaram.

Contudo, nem tudo eram rosas para os dois namorados. Ali bem perto, num casebre entalado na encosta da serra, vivia uma bruxa terrível, a quem aquele amor puro e sincero afectava profundamente. Todos os dias via os dois amantes ao longe e jurava acabar com aquilo. E, um dia, decidiu esperar junto aos penedos onde eles se costumavam encontrar. Era pela tardinha. Shahida chegou primeiro, com a sua aia Zarmina atrás. Trazia uma roca de fiar, como modo de passar o tempo enquanto não chegava o seu amor. E a velha bruxa, que sentia no cavaleiro a bravura dos corajosos, viu na ausência dele uma bela oportunidade de colocar em marcha o seu plano diabólico. Aproximou-se das duas mulheres e disse, virando-se para a princesa:
- Tu, Shahida, achas-te feliz, não é?
Surpreendida com aquela afirmação, a moça nem respondeu.
- Pois essa felicidade muito em breve acabará!
Zarmina, que estava sentada junto da princesa ajudando-a na fiação, levantou-se num pulo.
- E tu, velha agoirenta, quem és tu? Não te ensinaram como se deve tratar uma princesa?
- Quem sou eu, não interessa. Aquilo que realmente importa, sobretudo a ti, Shahida, é que o teu cavaleiro em breve partirá para a guerra e de lá não voltará.
Ouvindo isto, a moça começou a chorar. Zarmina, ao vê-la tão triste, avançou para a bruxa aos gritos.
- Vai-te daqui, maldita!
Perante o ar ameaçador da aia, a bruxa começou a afastar-se. Mas, já de longe, ainda acrescentou por entre uma risada arrepiante:
- E tu, ó bela e vaidosa Shahida, vais largar ais de saudade! Pois aqui te juro, por Satanás, que te irás picar no fuso dessa roca e quando largares o sétimo ai, morrerás!...
Dizendo isto, a bruxa sumiu-se no matagal. Shahida chorava cada vez mais. Zarmina chegou-se a ela e retirou-lhe a roca das mãos. Mas a princesa, num gesto desprevenido, picou-se no fuso. E o pânico instalou-se, definitivamente, no seu coração. Para mais, o seu amor nunca mais aparecia! A pobre da aia desfazia-se em alentos, em palavras de consolação e de ânimo. Mas o frio que Shahida sentia por dentro, teimava em congelar-lhe a alma.
Fernão não apareceu naquele dia nem em outro qualquer. Zarmina soube por uma moçárabe que ele partira num fossado às terras do Al Garbe. E nessa tarde, junto aos penedos onde fora tão feliz, Shahida soube da notícia. A dor que sentia era de tal dimensão que não lhe cabia no peito. Então, foi suspirando ais saudosos que iam ecoando pelo vale. Ao sétimo, como profetizara a bruxa, morreu.
A partir desse dia fatídico, passou o povo a chamar Seteais àquele lugar. E ao coito dos dois amantes, Penedo da Saudade.

N.A.: A origem do topónimo Seteais tem levantado muita controvérsia ao longo dos tempos e várias são as interpretações. Por exemplo, Camilo Castelo Branco aponta a origem em «seto», ou terreno cercado por sebes. No entanto, a proposta mais aceite é a que nos oferece Francisco Costa. Diz este autor sintrense que o nome deriva de centeio, já que aquele local se encontra descrito em alguns documentos como sendo o «Campo de Centeais», o que se torna bastante plausível.

Extraído do livro "Lendas e Mitos do Monte da Lua"

1 comentário:

  1. Parabéns pelo blog.
    Gostaria de saber se existe alguma lenda associada à Lagoa Azul.

    Obrigado

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