
João Rodil
Historiador
A Hora
A noite era de breu. Era de lua nova. A sacerdotisa havia já lançado as cinzas do sacrifício às covinhas da Pedra Erguida e o augúrio não era de feição. A Grande Mãe voltaria a nascer sim, daqui a três dias, mas traria aos homens o sopro da má fortuna e o peso granítico da fome abater-se-ia sobre a tribo.
As nove fogueiras acesas em torno da Pedra demarcavam a posição de outros tantos clãs presentes à cerimónia. Vindos das planícies ao redor do promontório, e pondo de parte contendas antigas, esperavam receber da Deusa um sinal de clemência e prosperidade. Mas, desolados com tão maus prenúncios logo no início dos ritos, murmuravam a desgraça como se ela fosse já coisa certa. No entanto, a impaciência era bicho que roía apenas a crença dos mais novos, porque os velhos, esses, embora de semblante contido, apresentavam ainda aquela serenidade que só a experiência possui. Sabiam que a tempestade é efémera como a vida e a morte. Sabiam, de um saber ancestral, que os homens podiam ainda conquistar as graças da Grande Mãe.
Um a um, os chefes de clã levantaram-se. Bateram três vezes com a cabeça na Pedra e depois lamberam-na. Enterraram as mãos na taça das cinzas e esfregaram a cara, porque também eles pertenciam à Grande Mãe, também eles seriam cinza um dia. E num abrupto uivado que cortou o negro das trevas e o crepitar das fogueiras, irromperam dançando e cantando à volta da Pedra Erguida.
Gul, filho de chefe, do clã que dominava e habitava o Promontório da Deusa, estalava entre os dedos um pequeno galho de árvore. O Mistério era terreno onde ainda não caçara. Talvez por isso olhava aquela dança com um interesse inocente, sem compreender a intenção ou a consequência, um pouco como quando olhava o Grande Lago ao entardecer e via enterrar-se nele todos os dias o sol. Contudo, aceitava aquele suicídio solar quotidiano como aceitava aquela dança. Sem buscar explicações.
Absorto entre o cavaco que partia inconsciente e os pensamentos que lhe enevoavam o espírito, sentiu que o canto parara e um silêncio de terra repousava à sua volta. Ergueu os olhos. Em frente, dobrados como medonhos carvalhos resistindo ao vento, apontavam para si os nove chefes, incluindo seu pai que se destacou dos demais.
- É a Hora! A tua Hora!
Uma lasca de silex pareceu deslizar-lhe pelas veias, ao mesmo tempo que sentia enformigar-se-lhe as pernas, mais ainda do que quando enfrentara um urso pela primeira vez. Sabia da Hora. Todos os novos eram preparados para ela, ou para a chegada dela, mas não sabia o que Hora queria dizer nem quando viria. Levantou-se num upa como quem desperta de um sonho. E explodiu na noite uma imensa algazarra.
Os chefes voltaram a cantar e os homens bramiam ao escuro as suas lanças e machados, gritando saudações e encorajamentos. Os do seu clã trataram logo de escavar um enorme buraco junto à Pedra Erguida, do lado onde havia de bater o sol. Veio a sacerdotisa com outras mulheres. Despiram-lhe as peles e os ornamentos. Ficou nu. Tão nu como os seus pensamentos que eram nenhuns. A sacerdotisa ungiu-o com óleos e resinas e segredou-lhe:
- Morre e sê um Guerreiro da Lua! Planta-te na terra e semeia-te no céu. Da fé e da coragem faz a tocha do teu espírito para que regresses sábio e a Grande Mãe volte a ser tripla e benéfica. - E mais não disse. Recolheu-se à fogueira com as outras mulheres.
Aproximaram-se dele os chefes de clã. Seu pai à frente. Gul olhou-o interrogante, talvez à espera de uma última explicação. Mas o velho chefe apenas lhe segurou os cabelos longos e encaminhou-o, suavemente, até ao buraco junto à Pedra. Estacou meio aterrorizado. Olhou a cova, depois os rostos que o fitavam espectantes, e por último o pai, de novo implorando ajuda, algum esclarecimento.
Perante o silêncio total, apercebeu-se que todos esperavam que entrasse no buraco. Sem saber porque o fazia, não hesitou, e de um salto viu-se enterrado até ao peito, apenas com os braços e a cabeça à superfície. Seu pai lançou alguns punhados de terra para dentro da cova e voltou-lhe as costas. O mesmo fizeram os outros chefes, sucessivamente, até que o seu corpo ficou perfeitamente aconchegado.
Um misto de medo e abandono turvou-lhe o olhar. Mesmo assim divisava ainda a multidão silenciosa, prostrada à sua frente em semi-círculo, como se esperassem que dos braços lhe nascessem folhas e da cabeça brotassem frutos. Mas não, não esperava o povo tal prodígio. Apenas aguardavam o Velho dos Velhos, Naur, guardião das sementes sagradas, para que o ciclo da iniciação de Gul se completasse por parte dos homens, porque o mais era com a Grande Mãe.
E já rompia devagar o dia e as fogueiras se apagavam, quando o velho chegou.
- Jovem Gul, filho de chefe! À terra desce o homem turvo e dela há-de voltar homem nítido. Assim como a serpente muda de pele e renasce, assim tu morrerás por três dias e à vida tornarás com a luz da Grande Mãe.
E dizendo isto esticou-lhe os braços, abriu-lhe as mãos com as palmas para cima e depositou em cada uma trinta e seis sementes.
- O Corvo as há-de comer se tu fores pedra como a Pedra.
Do Grande Lago soprou a brisa fresca da madrugada que rompia. O velho foi-se e com ele o povo. E Gul sentiu ainda mais o peso da terra, a presença da Pedra, o imperturbável céu que lhe carregava nos ombros. Pensou-se pequeno, infinitamente pequeno e impotente para combater os Mistérios. Imóvel, como quem espera criar raízes, aguardou o futuro incerto com uma única certeza: nem o poderoso instinto da sobrevivência o faria mover um dedo.
Extraído do livro "Lendas e Mitos do Monte da Lua"
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