terça-feira, 8 de março de 2011

Lendas de Sintra


João Rodil
Historiador


Os Filhos de Lug

A fonte de Brigida ficava próxima da aldeia. Tão próxima e tão longe para o corpo decrépito de Farimor. Mas levado pela necessidade imperativa do momento, e a ausência de Alimer, o aprendiz, lá arrastava o caldeirão até à nascente a buscar água para cozinhar os seus preparos.

Andava o povo atacado de febres, e não fora ele ter previsto a calamidade nos fumos e colectado todos os ingredientes necessários à feitura do unguento preservativo, pior teriam sido as consequências. Mesmo assim, alguns casos se haviam adensado e agora precisavam de medicamento mais eficaz.

Cansado a muito, regressou para o seu átrio com o caldeirão meio de água, e colocou-o sobre o fogo farto que deixara ateando. Quando começou a bolir, foi deitando cuidadosamente os ingredientes, cada um em separado e em quantidades certas. E enquanto mexia com um pau torso a estranha cozedura, meditava sobre a Lua pálida e deformada que estudara na noite anterior. E tudo lhe parecia enigmático, difícil de decifrar. Talvez fosse a idade, que já pesava e embrulhava-lhe as ideias, pois a Lua outras vezes lhe falara e sempre a havia entendido. Agora apenas sabia que a mensagem era futura, mas não a conseguia ler.

Alimer chegou carregado de ervas medicinais que tinha ido colher ao alto da serra. Trazia também as bagas de zimbro que lhe tinha pedido, tão necessárias à sua medicina. Apressou-se a misturá-las no conteúdo do caldeirão e deu por terminada a obra. Depois, foram de casa em casa a ministrá-la aos doentes que logo sentiram grande alívio.

Era já noite quando Farimor se recolheu. Mastigou, sem apetite, um pedaço de javali assado na véspera e bebeu uma pinga de leite de cabra para sossegar o estômago. Em seguida deitou-se. E o sono veio-lhe aos pinotes, cheio de sonhos. Via a Lua, grávida e sedutora, surgir-lhe como uma enorme bola de fogo que se aproximava. Trazia no rosto um sorriso maléfico, assustador, e dos olhos chispavam lágrimas incandescentes que rebentavam quando caíam no solo. No meio daquela aparição medonha, surgiu abruptamente uma ilha verde a deslizar pelo azul marinho. E o sorriso da Lua transformou-se numa atordoante gargalhada. daquela boca escura e fria toda ornada de fogo, começaram a sair serpentes aos molhos, enroladas umas nas outras como lianas, também elas rindo a muito em risadas silvadas e pérfidas. Fixou-se num monte de cobras e seguiu-lhes a queda, a ver onde desaguava aquele imenso caudal ofídico. E por baixo da boca da Lua que vomitava répteis em catadupas, estava o seu caldeirão aparando as serpentes e o fogo, como se não tivesse fundo, como se a vasilha pudesse comportar e suportar tanta maldade e substância.

Acordou iluminado, como se o sono tivesse sido reparador, que não fora. Saiu a respirar a madrugada e sentiu-se como um jovem que se prepara para a sua primeira grande caçada. Depois esfregou as mãos e preparou o fogo. E mal ainda a aldeia despertava, já Farimor compusera, por entre rezas ancestrais e bagas frescas, uma poção gostosa que foi espalhando o seu cheiro pelo vale.

Sentado no grande tronco escavado que lhe servia de trono, foi ordenando ao povo que bebesse do caldeirão. Quando já todos haviam terminado, pediu que se juntassem em seu redor. E depois falou:
- Nós somos o povo dos magos, os Tuatha Dé Danan! Por isso, sabemos a razão de estar aqui. E aqui é todo o lugar habitável, é tudo o que possa o homem fabricar ou transformar, é um lugar sem lugar num tempo sem tempo. Hoje, e desde há muito, vivemos nesta serra que é da Lua. Amanhã partiremos a cavalo no vento em busca das Ilhas Afortunadas.

Levantou-se no seio do povo um burburinho inquiridor. Partir? Farimor falava em partir? Mas o velho mago estava certo da sua leitura. A Lua em fogo do seu sonho não era mais que a imagem destruidora da guerra. As serpentes representavam os bárbaros que os haviam de atacar e dizimar: os de Ofiúco, que tomavam a serpente por totem. E o seu caldeirão aparando o fogo e as serpentes, era o barco da salvação capitaneado por ele. O rumo a tomar estava no fumo verde que saía da poção que preparara. Vogava para Norte, contra o vento. Seria, pois, para Norte que partiriam em busca das Ilhas da Bem Aventurança.

E num êxodo maciço, levando tudo o que podiam, desceram a serra até à foz do Rio de Lug, e acamparam na praia. Começaram, então, a construir um grande barco, por certo o maior que alguma vez tinha sido construído. E estando pronta a barca-mãe, outras mais pequenas se lhe seguiram.

Uma madrugada, com vento de feição e todos a bordo, partiram rumo a Norte em demanda das ilhas verdes. Levava o povo a alma cheia de incertezas e de medos. Mas o rosto de Farimor, cada dia mais iluminado, era candeia bastante para lhes alumiar a fé. E já aproavam mar adentro, quando avistaram ao longo da costa uma horda imensa de invasores, ostentando em seus estandartes as feições gélidas da serpente.

Extraído do livro "Lendas e Mitos do Monte da Lua".

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